Batendo pernas pelo mundo folclórico
Uma pequena reflexão sobre o curioso mundo do folclore e das lendas urbanas
Bem, se você já me conhece há algum tempo, sabe que sou fascinado por folclore. Seja na sua forma tradicional, seja em suas novas versões em lendas urbanas ou creepypastas. O como o imaginário do ser humano trabalha é, de longe, um dos meus tópicos favoritos e é algo que nunca me canso de ver, estudar e observar.
Além das próprias histórias em si, e daquilo que elas revelam, algo que sempre me surpreende é ver como algumas lendas e mitos terminam se encontrando em áreas completamente diferentes do mundo. Câmara Cascudo (1898-1986), um dos maiores estudiosos de nosso folclore, tem vários textos onde aborda essa questão, demonstrando e traçando os pontos de contato entre as civilizações e as eras.
Hoje, mais do que ter a pretensão de trazer uma conexão, gostaria de compartilhar uma pequena curiosidade que percebi ao assistir um dos episódios de Monstrum. Essa série da PBS, traz a Dra. Emily Zarka apresentando mitos e lendas do mundo todo, discutindo suas origens e significados.
O episódio em questão é o How The Internet Created Its Own Viral Monster , onde a doutora discute uma criatura conhecida como Fresno Nightcrawlers (algo como os Rastejantes de Fresno, em uma tradução bem livre). Essa coisinha aqui:
Ao ver esse vídeo, acho que a primeira sensação que tive foi de familiaridade. Por quê? Ora, veja só esse pequeno criptídeo. Seu “corpo”, se é que podemos chamar assim, parece uma cintura, com duas pernas e uma parte superior onde supostamente ficaria a sua cabeça. A conexão ainda não veio?
Bem, se você for da região Nordeste - e, mais especificamente, tiver alguma conexão com Recife - certamente já deve ter ouvido uma história sobre uma criatura bem peculiar do folclore pernambucano: a Perna Cabeluda.
Se você nunca ouviu falar sobre essa lenda, o site Aventuras na História tem uma matéria excelente sobre o tema, entrevistando inclusive o jornalista que foi responsável por sua criação.
Tendo surgido na década de 1970, a Perna Cabeluda é uma perna desprovida de corpo que vaga pelas ruas da cidade, ou espreita crianças de debaixo de suas camas, atacando com chutes e pontapés aqueles que tiverem a infelicidade de cruzar o seu caminho.
Segundo Raimundo Carneiro, jornalista responsável por trazer a criatura para as páginas do jornal, sua criação surgiu em um piada, como apurado por Lucas Vasconcellos:
“Nos idos da década de 1970, Carrero, que trabalhava no Diário de Pernambuco, afirma que um companheiro de redação chegou afoito ao trabalho durante a noite. Dizia ter visto, embaixo da cama que dividia com a esposa, uma perna cabeluda. “Mas e o tronco?”, indagaram os amigos, “Não tinha”, respondeu, com toda a sinceridade.” (Vasconcellos, Lucas. Terror no Recife: A lenda da Perna Cabeluda. Aventuras na História, 10 de outubro de 2019. Disponível em: [ https://aventurasnahistoria.com.br/noticias/reportagem/perna-cabeluda.phtml ]. Acesso em 27 mar. 2025. )
Ainda que carregue uma carga de hostilidade ausente em seus “primos” norte-americanos, é bem curioso de ver como os Nightcrawlers e Perna se parecem no que diz respeito a forma. De fato, por mais que sejam duas criaturas “forjadas”, me surpreendeu a proximidade estética presente entre uma e outra. E isso é algo bem curioso de se notar.
Por mais que monstros venham de uma série de premissas e ansiedades que afligem uma dada sociedade, suas formas muitas vezes, variam com uma certeza frequência, sendo moldadas pelo ambiente em que se encontram. Alguns traços, como ausência de partes do corpo, ou o excesso de partes, até podem ser comuns, mas as formas como isso se apresenta pode variar.
Por exemplo, existem semelhanças entre nosso saci e outros seres que povoam as florestas das Américas. Assim como há semelhanças entre ele e duendes e criaturas portuguesas. No entanto, as diferenças que nossa cultura imprimiram em nosso saci o tornam uma criatura única e particular.
De fato, mesmo quando são idênticas, como no caso da Iara, isso se deve mais à sobreposição da cultura estrangeira do que por uma concepção autóctone, como bem observa Câmara Cascudo em seu livro Geografia dos Mitos Brasileiros.
Assim, não posso deixar de ficar pensando, com um misto de curiosidade e, por que não, maravilhamento, em como essa criatura norte-americana veio a surgir, em uma terra e em um tempo tão distantes de sua prima, e sem o menor sinal - até onde saibamos - de contato prévio entre essas duas culturas.
Não só isso, é curioso notar a semelhança entre as criaturas, considerando suas “origens”. Pois, se a Perna fala muito sobre a presença de amantes em casa, quando não assume o papel de metáfora para a violência doméstica (veja mais sobre isso na matéria do Lucas), os Crawlers estariam mais próximos de uma representação do medo dos norte-americanos com a figura de estrangeiros. Ainda assim, as formas das criaturas são extremamente parecidas.
Mesmo que consideremos o amante como um “estrangeiro” no contexto da casa, o ponto focal da ansiedade da Perna continua sem bater com o dos Crawlers. Ainda assim, a semelhança de forma permanece.
Assim, perguntas e mais perguntas vão se avolumando, mas poucas são as respostas que parecem satisfatórias o suficiente para resolver esse mistério. E isso é, particularmente, uma das coisas que acho mais divertidas no estudo e pesquisa do folclore: essa busca por coincidências e justificativas que cercam as histórias, assim como o significado que pode existir por trás delas.
Lógico, sempre há o caso de que a semelhanças seja obra do mero acaso. Essa resposta, talvez a mais provável, e certamente a mais insatisfatória, pode até encerrar a discussão, mas não é capaz de sanar essa curiosidade e maravilhamento que a coincidência em si nos provoca. Nem de longe.
Ou, pelo menos, é assim que penso…
Então, antes de encerrarmos a News de hoje, gostaria de trazer aqui dois novos textos que saíram lá na Galeria da Meia-Noite:
Lançamento: Creepypastas 1.1 + Entrevista com Mário Bentes, CEO da Lendari
Akane Banashi Volume 1 - Resenha:
Da mesma forma, caso queira conhecer um pouco da minha produção que é voltada para o folclore (nacional ou não), você pode ir atrás dos seguintes contos:
Prosa - Nordeste Assombrado (Dark Angels)
Dia da Caça - Aqueles que Surgem com o Medo (Carnage)
A Casa do Comendador - Folclore Hostil: Ano 2 (Carnage)
As Moradoras de Xochimilco - Lugares para Jamais Visitar (Lendari)
E por hoje é só!